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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Railânder



Gilles Deleuze - O ato de criação
Palestra de 1987. Folha de São Paulo, 27/06/1999. Tradução: José Marcos Macedo.

Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. (...) O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer? Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa ideia. Eis uma ideia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida.

A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente — a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra — vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. (...)

Ora, o que é uma informação? Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia.

É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. (...) A sociedade disciplinar definia-se . . . pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. (...) É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs — e Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de sociedades de controle.

Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento.

Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro.

Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. O que a obra de arte pode ter a ver com isso?

Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é — e ela o é por natureza — ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contrainformação só é efetiva quando se torna um ato de resistência.

Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.

Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte?

Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-1976) desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. (...)

domingo, 20 de setembro de 2009

"Quatro vezes David Lynch"

Por Ruy Gardnier, da revista virtual Contracampo

1. A Mulher Que Faz os Sinais

No começo de Twin Peaks, Os Últimos Dias de Laura Palmer, uma mulher emite signos através de movimentos do corpo e peças de roupa. Ela deve informar dois detetives a respeito de um caso em andamento numa pequena cidade do noroeste dos Estados Unidos, próxima de Twin Peaks. O modo como a cena é filmada impressiona, tanto pela sua extensão como pela relação que mantém com o espectador: nada é reconhecido, todas as pistas que são dadas não podem ser identificadas por aquele que assiste ao filme. Essa cena pouco revela acerca do andamento do filme inteiro. Mas ao contrário nos revela uma das portas principais para entrarmos no mundo de David Lynch: um mundo em que o signo vale como signo e não mais como coisa a ser representada, um mundo em que o valor de um signo é irredutível a um ou alguns significados. A mulher dos sinais informa os detetives; eles sabem ler alguns dos signos. Mesmo esses poucos compreendíveis jamais serão utilizados. A prova, o indício, o instrumento necessário para o desenvolvimento da obra e para o percurso da busca policial (grande parte dos filmes de Lynch pertence ao gênero policial, à sua maneira) estão sempre deslocados em relação à sua efetividade. É só lembrarmos de todas as provas que o Agente Especial Dale Cooper corre atrás, de todos os recursos a que recorre e que jamais serão utilizados. A prova não serve para o detetive bonzinho achar o criminoso; serve para o diretor brincar com o espectador. É, em muitos aspectos, uma lógica da armadilha. Pode-se achar que isso só vale para Estrada Perdida, mas esse filme serve sobretudo como a afirmação absoluta desse princípio. A lógica vale igualmente para grande parte dos filmes anteriores (exclui-se apenas O Homem Elefante).


2. You'll never have me

E mesmo assim David Lynch não deve ser considerado, como ainda se insiste em se fazer até hoje, como um formalista. Ao contrário, se seus filmes pedem sempre um apuro, um auteurismo, é em função do mundo complexo que ele tem a nos oferecer. Poderíamos acreditar apressadamente que essa ausência de sentido é pura afetação. Mas não se trata disso: trata-se sempre em David Lynch de filmar a própria ausência como manifestação de uma outra coisa. Se na lógica da armadilha a imagem que vem à cabeça é a da mulher dos sinais, na lógica da ausência é o final de Os Últimos Dias de Laura Palmer. Laura, Dale Cooper e o anão olham para fora da tela, com um sorriso ao mesmo tempo perverso e apaixonado. Aquilo para que eles olham, bem entendido, jamais será mostrado. Assim como a fascinação do olhar de Kyle MacLachlan em Veludo Azul ou a poderosa dominação que toda figura feminina tem em seus filmes — é sempre a irrupção violenta de uma presença que poderá ser fatal (e acabará sendo). Essa esfera daquilo que não pode ser mostrado, daquilo que ao mesmo tempo fascina e assusta (o sexo em Veludo Azul, o poder em Duna, o 'black lodge' em Twin Peaks, o nexo do sentido em Estrada Perdida), é a dimensão do fora-da-tela, a dimensão do irrealizável, do avassalador acaso que pode destruir com o mundo em que se vive (Fred e Renée em Estrada Perdida). E há as figuras destruidoras, terrificantes: o mystery man que invade a casa de Fred e Renée, Dennis Hopper em Veludo Azul, Bob em Twin Peaks. Há um destino que o personagem lynchiano vislumbra e deseja, mas que ao mesmo tempo não consegue evitar de repudiar. Há um elemento propriamente trágico na obra de David Lynch: a relação do personagem com o tempo — não tenha dúvidas, ele derruba tudo.


3. Às vezes um vento sopra e os mistérios do amor têm livre curso

Até aqui pintamos o universo de um cineasta cerebral e mecânico, como bem faria perceber Estrada Perdida. Mas parece que se fôssemos por esse caminho deixaríamos de compreender muita coisa de sua obra (inclusive o próprio filme). Michel Chion, talvez o maior especialista da obra lynchiana, considera que o sucesso de Estrada Perdida tenha eclipsado uma parte importante da composição interna de cada filme: o amor. Trata-se, isso sim, do grande desencadeador de tudo, é aquilo que está na base de cada minuto de sua obra. Aliás, é só na oposição com o amor que esse destino terrível e indeterminado da ausência de sentido pode funcionar. Porque é preciso resguardar um lugar para o amor, deve-se tentar afastar, purificar o destino — tarefa que sempre será tentada e nunca conseguida em seus filmes (as vitórias no cinema de David Lynch só são aparentes). Daí o papel tão estranho de Paul Atreides em Duna: não é um herói, não grita, não luta — é apenas um bom moço (o rosto de Kyle MacLachlan exige) que espera a chegada de seu destino. Duna é um filme sem ação não é à toa. Se o destino opera um papel tão importante em seus filmes, é porque os personagens não podem esperar dele senão a sua melhor realização: o amor (aí entendido como "ambiente perfeito"). Os filmes de Lynch são sempre uma busca pelo amor. Sailor e Lula em Coração Selvagem, Laura Dern e MacLachlan em Veludo Azul, o próprio Merrick em O Homem Elefante não buscam outra coisa. A melhor imagem para representar essa lógica do amor é uma metáfora musical, a obra de Julee Cruise, para quem Lynch fez letras, fez um vídeo e produziu um disco. Podemos até nos remeter ao Industrial Symphony no.1 para tudo ficar mais claro. Por trás de um ambiente forte, pesado, com o poderoso som dos instrumentos de construção fezendo um barulho insuportável, surge a música acolhedora mas dissonante de Angelo Badalamenti, orquestrador. Julee Cruise acolhe (amor), mas nunca consegue superar o destino (a dissonância, o barulho dos instrumentos de construção), porque se lhe é fechada a porta abre-se uma janela.


4. Lynch game-master do universo da arte

Um cinema que apela mais para os sentidos do que para uma "lógica" ou para uma narratividade stricto sensu deve saber levar a sério seu jogo. Quer-se dizer com isso: um cinema sensualista deve controlar à exaustão todos as suas formas de manifestação: imagem, som, montagem, cenografia — tudo deve transmitir a sensação de que estamos em outro mundo, um mundo que se mantém por seu alto poder de sedução. Daí ser possível pensar em David Lynch como uma atualização do conceito wagneriano de obra-de-arte-total, mas devidamente purgado de todos os problemas político-filosóficos de Wagner e do germanismo do final do século XIX. Porque a obra-de-arte-total de Lynch vai mais no sentido de uma experiência do que no da "voz de um povo" ou no clamor originário da raiz de uma nação. A lógica de Lynch como autor é uma lógica da instalação, aí encarada em seu sentido contemporâneo de arte: um lugar em que novas percepções de tempo e espaço devem ser experimentadas. E, de fato, todas as suas obras se compõem como músicas mais do que como filmes. Os personagens são mais "temas" do que interiorizações psicológicas (em Lynch existe sempre um fator místico que ultrapassa o psicológico — Tarkovski — ou um fator visual que reduz a psicologia — Hitchcock). O que está em jogo, mais uma vez, são as potencialidades de expressão. Uma arquitetura e disposição de interiores não naturalista — o quarto de Fred e Renée, o 'black lodge' de Twin Peaks... —, uma música que traduz à maravilha seu universo (como não aproximar Elizabeth Fraser ou Julee Cruise do universo do amor e Roy Orbison e Rammstein do universo da indizível violência?), uma arregimentação de dados culturais heterogêneos para compor um ambiente híbrido (a estufa e o hotel do seriado Twin Peaks, a casa que exibe num telão imagens de um filme pornô em Estrada Perdida, hibridização entre corpos (a posição-X de Sailor e Lula em Coração Selvagem, Pete e Alice fazendo amor no deserto em Estrada Perdida) ou entre corpo e objeto (o morto que tem a cabeça ligada à mesa transparente em Estrada Perdida, Paul Atreides guaindo um verme gigante em Duna). Lynch parece agregar todas as formas de arte ao seu métier. Ao contrário do que fez um Greenaway ou um Terence Davies, não se trata de tornar o cinema erudito (e um tanto mole, diríamos) através de referências da História da Arte ou de uma elegância herdada de um 'bom gosto refinado' de outrora. Ao contrário, a única coisa que é traduzida das outras artes é a experiência, a arte trazida à tela somente enquanto possibilidade de experiência e nada mais. Lynch é menos um esteta do que um provocador: o que importa para ele é o discurso valoroso com o futuro e não à volta às belas artes do passado. David Lynch pode ser considerado um artista "renascentista", no sentido do artista ser versado em mais de uma arte, mas apenas numa única acepção: tudo que ele faz converge para o cinema e é por ele aproveitado. A pintura, a escultura, a instalação não servem senão como objeto cinematográfico. Eis a moral do cineasta em David Lynch.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

mestre: pipilotti rist



Primeiro, teratonia em grau severo com I'm Not The Girl Who Misses Much, vídeo de estreia, em 1986, dessa artista suíça (ítalo-suíça?). Depois, trailer para uma exposição que a moça fez na FACT (Foundation for Art and Creative Technology):

quarta-feira, 22 de julho de 2009

a Influência de Francis Bacon sobre os Veículos Automotores Brasileiros.

Francis Bacon - Study for Bullfight No.1

Talvez o que mais caracterize a Ío seja o humor. Mas, certamente, um humor que não pode ser classificado como engraçado - de modo geral não tem força nem para arquear o canto dos lábios. Emprega a ironia como principal instrumento, mas também se apóia em oxímoros e humor negro. Mas o que nos interessa no humor é a apropriação da estrutura da piada. Isto é, uma narrativa inusitada que se constrói e subitamente tem um ponto inesperado de ruptura, onde normalmente está a graça e é o instante em que o ouvinte toma consciência das relações internas da piada. Não é casual que o Osho usava, com freqüência, piadas em suas palestras. A percepção de que uma piada é uma homeopática epifania, que tem estreita correlação com estados mais complexos de consciência como, por exemplo o kensho* budista ou a êxtase católica ou um It Lispectoriano, é o que nos interessa como método de uso. Uma percepção que ocorre em um tempo exíguo em que os múltiplos sentidos se conectam e que seja engraçado, mas sem graça, é nossa ambição. Vamos a uma análise de caso ilustrativa: no espetáculo SAÍDA DE EMERGÊNCIA, de 2004-06, havia um vídeo com o título quilométrico (referência humorística aos títulos de capítulos de Cândido, de Voltaire, ou Don Quixote, em que o enunciado de modo geral antecipa tudo que acontecerá no mesmo) de A Influência de Francis Bacon sobre os Veículos Automotores Brasileiros. Obviamente que Francis Bacon não é aquele precursor da ciência moderna (ao qual alguns maledicentes imputavam a obra de Shakespeare), mas o pintor. Em nossos translados a nosso retiro Garibaldense (uau, que bucólico), percebemos que os animais mortos e sucessivamente atropelados nas estradas acabavam tomando a forma de figuras à la Francis Bacon. Disto surgiu a disposição de fazer um vídeo com o irônico titulo supracitado, como se o pintor britânico influenciasse esteticamente os motoristas brazucas em suas ações assassinas motorizadas, tornando as estradas, assim, um amplo espaço expositivo, obviamente macabro.
Io - Still do vídeo "A Influência.."

Pós escrito:
Para aqueles que buscam significados transcendentais na Ironia ou na sincronicidade, no dia em que iríamos começar a gravação do vídeo, nossa gata Pimponeta foi atropelada e morta. Boa diversão aos que tem o hobby de procurar significados nas complexas relações aleatórias de eventos dissociados, e encontrar nisto um significado simbólico.

*Kensho refere-se à primeira percepção da Natureza Búdica ou Verdadeira Natureza, algumas vezes conhecida como "acordar". Diferentemente do satori, que se refere a um estado de iluminação mais profundo e duradouro, o Kensho não é um estado permanente de iluminação, mas uma visão clara da natureza última da existência.