quarta-feira, 30 de setembro de 2009

o ensino não existe

O conhecer e o conhecimento: comentários sobre o viver e o tempo
(Luiz Antônio Botelho Andrade e Edson Pereira da Silva)
Departamentos de Imunobiologia e de Biologia Marinha, UFF, Niterói


. . . podemos ampliar a definição do conhecer para fora do âmbito humano e, assim, aceitar que todos os organismos vivos atuais possuem uma conduta adequada aos contextos em que vivem (estão adaptados) e, portanto, estão em ato contínuo de conhecer o mundo em que vivem, justificando-se, assim, o aforismo "viver é conhecer", anunciado pelos neurobiólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela com a Biologia do Conhecer (Maturana, 1970; Maturana e Varela, 1995).

É precisamente este "se manter vivo", em acoplamento estrutural com o meio, que estamos conotando como conhecer biológico, ou seja, todo organismo vivo está, momento a momento, em ato contínuo de conhecer. Assim, não devemos surpreender-nos com o conhecer de um pássaro em migração, vencendo distâncias de mais de 5.000 km para fugir do inverno. Tampouco devemos nos surpreender se um outro pássaro mergulha para capturar um peixe abaixo da linha d'água e, mesmo sem saber a lei de difração de Snell, é bem sucedido em seu empreendimento. E o peixe, que conhece o mundo d'água, é interrompido no seu ato contínuo de conhecer o mundo (d'água) e morre. Nesse caso, tanto o pássaro quanto o peixe conhecem o mundo em que vivem e podem morrer quando deixam de estar em ato contínuo de conhecer, isto é, perdem o acoplamento estrutural com o meio, deixam de saber viver.

Aquilo que chamamos de conhecimento é o produto advindo do processo sistemático do conhecer e inclui, além do produto advindo do processo, a capacidade do organismo observar e de fazer referência, de forma recursiva e recorrente, à própria história do processo. Essa capacidade de fazer referência à história, utilizando as recursões da linguagem é particular [exclusiva] e constitutiva do mundo humano.

Para Maturana, a linguagem, entendida como fenômeno biológico, é uma maneira dos indivíduos fluírem em interações recorrentes por meio das coordenações de coordenações condutuais consensuais (Maturana, 1989, 1997). Seguindo essa definição, o autor faz-nos três alertas com relação à linguagem: primeiro, a linguagem não tem lugar no corpo dos participantes, mas sim, no espaço de coordenações recorrentes e consensuais de conduta. Segundo, nenhuma conduta em particular constitui, por si só, um elemento da linguagem, mas é parte dela somente na medida em que pertencer a um fluir recursivo de coordenações consensuais de conduta. Assim, são palavras somente àqueles gestos, sons e posturas corporais participantes do fluir recursivo como elementos das coordenações de coordenações consensuais de conduta que constituem a linguagem. Terceiro, a capacidade do ser humano em fazer referência à história por meio das distinções na linguagem, pelas recursões recorrentes de coordenações de coordenações condutuais consensuais com as quais e pelas quais surgem tanto o observar quanto o observador. Logo, pensar o conhecimento é assumir um referencial de segunda ordem. Para além dos enredos fenomênicos e para além dos enredos explicativos, construir um enredo do enredo - um meta-enredo. Nesse sentido, talvez pudesse ser dito, usando a pescaria como uma metáfora, que o peixe é a rede. É esse movimento de reflexão para conhecer o conhecer, esse se voltar sobre a volta que conotamos como conhecimento e que nos permite recuperar da vertigem referida por Maturana e Varela na epigrafe deste ensaio.

Se o leitor aceitou que o conhecer - conduta adequada de um organismo em um contexto - pode ser ampliado para toda escala biológica, solicitamos também ao leitor que aceite a possibilidade do aprender - mudança da conduta de um organismo - ser ampliado da mesma forma. Se isso for aceito, segue que o aprender acontece o tempo todo, como uma mudança contínua da conduta do organismo. É precisamente essa ação contínua do mudar de conduta do organismo que estamos afirmando como inevitável, pelo menos enquanto esse organismo estiver realizando a autopoiese, em acoplamento estrutural com o mundo.

. . . o ensino não existe, pelo menos da forma como ele é entendido pelo senso comum, como instrução, como transferência de informações, de comunicados. Existe um fechamento operacional do vivo, implicando com isto que o seu operar é sempre auto-referencial e, portanto, hermético às informações (Maturana, 1970). Isso não impede, no entanto, que sejamos estimulados pelo mundo exterior. Os estímulos de fora não podem especificar de forma instrutiva a estrutura interna do organismo como um todo, nem a sua conduta - a relação do organismo com o meio (Maturana, 1970; Maturana e Varela, 1995).

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Railânder



Gilles Deleuze - O ato de criação
Palestra de 1987. Folha de São Paulo, 27/06/1999. Tradução: José Marcos Macedo.

Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. (...) O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer? Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa ideia. Eis uma ideia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida.

A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente — a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra — vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido. (...)

Ora, o que é uma informação? Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem. As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia.

É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. (...) A sociedade disciplinar definia-se . . . pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso. (...) É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs — e Foucault tinha por ele uma viva admiração —, de sociedades de controle.

Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento.

Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro.

Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. O que a obra de arte pode ter a ver com isso?

Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é — e ela o é por natureza — ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contrainformação só é efetiva quando se torna um ato de resistência.

Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação? Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.

Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte?

Não sei. André Malraux (escritor e diretor francês, 1901-1976) desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. (...)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

teratonia no braço



O artista cipriota Stelarc, criador do conceito de que o corpo é obsoleto, faz performances em que é suspenso por ganchos - como essa bastante espiritualista acima - e ligado a alguma invenção robótica sua. Em 2007, Stelios Arcadiou (seu nome de nascença) causou polêmica ao cultivar uma prótese de orelha humana por meio de cultura celular e depois implantá-la em seu braço esquerdo com uma cirurgia, depois de anos procurando um médico que aceitasse fazê-la. Ele foi o primeiro e único homem a utilizar esta técnica até hoje.









A seguir, ele pretende implantar um microfone para captar e gravar tudo o que a orelha do braço escuta.

ousado


Martin Creed (1968) é um artista escocês que trabalha com arte conceitual e ganhou o Turner Prize en 2001.




Martin Creed
Work No. 600
2006
35 mm film transferred to DVD
Installation at 'Big Dogs' MC, Los Angeles



domingo, 20 de setembro de 2009

"Quatro vezes David Lynch"

Por Ruy Gardnier, da revista virtual Contracampo

1. A Mulher Que Faz os Sinais

No começo de Twin Peaks, Os Últimos Dias de Laura Palmer, uma mulher emite signos através de movimentos do corpo e peças de roupa. Ela deve informar dois detetives a respeito de um caso em andamento numa pequena cidade do noroeste dos Estados Unidos, próxima de Twin Peaks. O modo como a cena é filmada impressiona, tanto pela sua extensão como pela relação que mantém com o espectador: nada é reconhecido, todas as pistas que são dadas não podem ser identificadas por aquele que assiste ao filme. Essa cena pouco revela acerca do andamento do filme inteiro. Mas ao contrário nos revela uma das portas principais para entrarmos no mundo de David Lynch: um mundo em que o signo vale como signo e não mais como coisa a ser representada, um mundo em que o valor de um signo é irredutível a um ou alguns significados. A mulher dos sinais informa os detetives; eles sabem ler alguns dos signos. Mesmo esses poucos compreendíveis jamais serão utilizados. A prova, o indício, o instrumento necessário para o desenvolvimento da obra e para o percurso da busca policial (grande parte dos filmes de Lynch pertence ao gênero policial, à sua maneira) estão sempre deslocados em relação à sua efetividade. É só lembrarmos de todas as provas que o Agente Especial Dale Cooper corre atrás, de todos os recursos a que recorre e que jamais serão utilizados. A prova não serve para o detetive bonzinho achar o criminoso; serve para o diretor brincar com o espectador. É, em muitos aspectos, uma lógica da armadilha. Pode-se achar que isso só vale para Estrada Perdida, mas esse filme serve sobretudo como a afirmação absoluta desse princípio. A lógica vale igualmente para grande parte dos filmes anteriores (exclui-se apenas O Homem Elefante).


2. You'll never have me

E mesmo assim David Lynch não deve ser considerado, como ainda se insiste em se fazer até hoje, como um formalista. Ao contrário, se seus filmes pedem sempre um apuro, um auteurismo, é em função do mundo complexo que ele tem a nos oferecer. Poderíamos acreditar apressadamente que essa ausência de sentido é pura afetação. Mas não se trata disso: trata-se sempre em David Lynch de filmar a própria ausência como manifestação de uma outra coisa. Se na lógica da armadilha a imagem que vem à cabeça é a da mulher dos sinais, na lógica da ausência é o final de Os Últimos Dias de Laura Palmer. Laura, Dale Cooper e o anão olham para fora da tela, com um sorriso ao mesmo tempo perverso e apaixonado. Aquilo para que eles olham, bem entendido, jamais será mostrado. Assim como a fascinação do olhar de Kyle MacLachlan em Veludo Azul ou a poderosa dominação que toda figura feminina tem em seus filmes — é sempre a irrupção violenta de uma presença que poderá ser fatal (e acabará sendo). Essa esfera daquilo que não pode ser mostrado, daquilo que ao mesmo tempo fascina e assusta (o sexo em Veludo Azul, o poder em Duna, o 'black lodge' em Twin Peaks, o nexo do sentido em Estrada Perdida), é a dimensão do fora-da-tela, a dimensão do irrealizável, do avassalador acaso que pode destruir com o mundo em que se vive (Fred e Renée em Estrada Perdida). E há as figuras destruidoras, terrificantes: o mystery man que invade a casa de Fred e Renée, Dennis Hopper em Veludo Azul, Bob em Twin Peaks. Há um destino que o personagem lynchiano vislumbra e deseja, mas que ao mesmo tempo não consegue evitar de repudiar. Há um elemento propriamente trágico na obra de David Lynch: a relação do personagem com o tempo — não tenha dúvidas, ele derruba tudo.


3. Às vezes um vento sopra e os mistérios do amor têm livre curso

Até aqui pintamos o universo de um cineasta cerebral e mecânico, como bem faria perceber Estrada Perdida. Mas parece que se fôssemos por esse caminho deixaríamos de compreender muita coisa de sua obra (inclusive o próprio filme). Michel Chion, talvez o maior especialista da obra lynchiana, considera que o sucesso de Estrada Perdida tenha eclipsado uma parte importante da composição interna de cada filme: o amor. Trata-se, isso sim, do grande desencadeador de tudo, é aquilo que está na base de cada minuto de sua obra. Aliás, é só na oposição com o amor que esse destino terrível e indeterminado da ausência de sentido pode funcionar. Porque é preciso resguardar um lugar para o amor, deve-se tentar afastar, purificar o destino — tarefa que sempre será tentada e nunca conseguida em seus filmes (as vitórias no cinema de David Lynch só são aparentes). Daí o papel tão estranho de Paul Atreides em Duna: não é um herói, não grita, não luta — é apenas um bom moço (o rosto de Kyle MacLachlan exige) que espera a chegada de seu destino. Duna é um filme sem ação não é à toa. Se o destino opera um papel tão importante em seus filmes, é porque os personagens não podem esperar dele senão a sua melhor realização: o amor (aí entendido como "ambiente perfeito"). Os filmes de Lynch são sempre uma busca pelo amor. Sailor e Lula em Coração Selvagem, Laura Dern e MacLachlan em Veludo Azul, o próprio Merrick em O Homem Elefante não buscam outra coisa. A melhor imagem para representar essa lógica do amor é uma metáfora musical, a obra de Julee Cruise, para quem Lynch fez letras, fez um vídeo e produziu um disco. Podemos até nos remeter ao Industrial Symphony no.1 para tudo ficar mais claro. Por trás de um ambiente forte, pesado, com o poderoso som dos instrumentos de construção fezendo um barulho insuportável, surge a música acolhedora mas dissonante de Angelo Badalamenti, orquestrador. Julee Cruise acolhe (amor), mas nunca consegue superar o destino (a dissonância, o barulho dos instrumentos de construção), porque se lhe é fechada a porta abre-se uma janela.


4. Lynch game-master do universo da arte

Um cinema que apela mais para os sentidos do que para uma "lógica" ou para uma narratividade stricto sensu deve saber levar a sério seu jogo. Quer-se dizer com isso: um cinema sensualista deve controlar à exaustão todos as suas formas de manifestação: imagem, som, montagem, cenografia — tudo deve transmitir a sensação de que estamos em outro mundo, um mundo que se mantém por seu alto poder de sedução. Daí ser possível pensar em David Lynch como uma atualização do conceito wagneriano de obra-de-arte-total, mas devidamente purgado de todos os problemas político-filosóficos de Wagner e do germanismo do final do século XIX. Porque a obra-de-arte-total de Lynch vai mais no sentido de uma experiência do que no da "voz de um povo" ou no clamor originário da raiz de uma nação. A lógica de Lynch como autor é uma lógica da instalação, aí encarada em seu sentido contemporâneo de arte: um lugar em que novas percepções de tempo e espaço devem ser experimentadas. E, de fato, todas as suas obras se compõem como músicas mais do que como filmes. Os personagens são mais "temas" do que interiorizações psicológicas (em Lynch existe sempre um fator místico que ultrapassa o psicológico — Tarkovski — ou um fator visual que reduz a psicologia — Hitchcock). O que está em jogo, mais uma vez, são as potencialidades de expressão. Uma arquitetura e disposição de interiores não naturalista — o quarto de Fred e Renée, o 'black lodge' de Twin Peaks... —, uma música que traduz à maravilha seu universo (como não aproximar Elizabeth Fraser ou Julee Cruise do universo do amor e Roy Orbison e Rammstein do universo da indizível violência?), uma arregimentação de dados culturais heterogêneos para compor um ambiente híbrido (a estufa e o hotel do seriado Twin Peaks, a casa que exibe num telão imagens de um filme pornô em Estrada Perdida, hibridização entre corpos (a posição-X de Sailor e Lula em Coração Selvagem, Pete e Alice fazendo amor no deserto em Estrada Perdida) ou entre corpo e objeto (o morto que tem a cabeça ligada à mesa transparente em Estrada Perdida, Paul Atreides guaindo um verme gigante em Duna). Lynch parece agregar todas as formas de arte ao seu métier. Ao contrário do que fez um Greenaway ou um Terence Davies, não se trata de tornar o cinema erudito (e um tanto mole, diríamos) através de referências da História da Arte ou de uma elegância herdada de um 'bom gosto refinado' de outrora. Ao contrário, a única coisa que é traduzida das outras artes é a experiência, a arte trazida à tela somente enquanto possibilidade de experiência e nada mais. Lynch é menos um esteta do que um provocador: o que importa para ele é o discurso valoroso com o futuro e não à volta às belas artes do passado. David Lynch pode ser considerado um artista "renascentista", no sentido do artista ser versado em mais de uma arte, mas apenas numa única acepção: tudo que ele faz converge para o cinema e é por ele aproveitado. A pintura, a escultura, a instalação não servem senão como objeto cinematográfico. Eis a moral do cineasta em David Lynch.

the caretaker



104 mulheres, fora duas marionetes e uma papagaia, interpretam uma carta de rompimento que a artista francesa Sophie Calle recebeu, do seu então namorado Gregoire Bouille, e dão forma à dor da artista. 'Cuide de você', exposição que ocorreu na Bienal de Veneza, em 2007, na França, no Canadá, nos Estados Unidos & no SESC Pompeia, em São Paulo, reuniu interpretações textuais, traduções da carta em braile, código Morse, estenografia, código de barras e outras linguagens gráficas, além de retratos de cantoras e atrizes atuando, e filmes que registram interpretações-performance da carta.

"Recebi uma carta de rompimento.
E não soube respondê-la.
Era como se ela não me fosse destinada.
Ela terminava com as seguintes palavras: “Cuide de você”.
Levei essa recomendação ao pé da letra.
Convidei 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão,
para interpretar a carta do ponto de vista profissional.
Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.
Entendê-la em meu lugar. Responder por mim.
Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.
Uma maneira de cuidar de mim."
(Sophie Calle)

O E-MAIL

Sophie

Há algum tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu último e-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor conversar com você e dizer o que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito.

Como você pôde ver, não tenho estado bem ultimamente. É como se não me reconhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível, contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para tentar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a “quarta”. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as “outras”, não achando obviamente um meio de vê-las, sem fazer de você uma delas.

Achei que isso bastasse; achei que amar você e o seu amor seriam suficientes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizontes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e “generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de que o amor que você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que jamais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu “desassossego” se dissolveria nela para encontrar você.

Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que me encontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”. E sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Jamais menti para você e não é agora que vou começar.

Houve uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,…) e compreensível (obviamente…); com isso, jamais poderia me tornar seu amigo.

Mas hoje, você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da maneira que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.

Mas hoje, seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tão bem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.

Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.

Cuide de você.

G

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

inversão

Rachel Whiteread, nas duas obras a seguir, utiliza a "técnica" da inversão, esculpindo com gesso o negativo, a não-matéria, o vazio. A primeira obra é numa sala de um memorial do holocausto, e trata-se de tudo que não era livro ou estante em estantes de livros que o nazismo tinha em sua lista negra. A segunda chama-se 'Room 101'. A sala 101 era uma sala mencionada no livro '1984', do George Orwell. Naquela distopia criada, o máximo de tortura que a máquina do Grande Irmão poderia proporcionar era dentro da sala 101. Mais do que torturas horríveis, como colocar o rosto do personagem principal, Winston, engatado a um cano onde foram soltos ratos famintos, e Winston tinha fobia severa a ratos. Mais do que qualquer tortura era correr o risco de ser levado para a sala 101, da qual se ouvia falar muito, mas não se sabia o que ocorria "lá dentro". As aspas são porque muito provavelmente a sala nem existisse, de fato, na história. Essa sala existiu na vida real, era uma sala da BBC onde Orwell trabalhou, e Orwell odiava o serviço público. Quando soube que o prédio da BBC que continha a sala iria ser demolido, Rachel apressou-se em pedir para fazer esse molde de gesso. Então, esculpir todo o conteúdo da sala significou dar forma a todo esse medo, a toda essa opressão, essa tortura psicológica, mais uma vez não vista, já que a escultura parece ser maciça. 'Room 101' encontra-se em um museu da Inglaterra, numa sala onde estão réplicas das grandes obras de arte que a Inglaterra não conseguiu roubar, segundo o professor Charles Watson.



terça-feira, 15 de setembro de 2009

como explicar desenhos a uma lebre morta (1965)



O escultor alemão Joseph Beuys, aquele do feltro e da graxa, e do grupo Fluxus, numa de suas ações, passou horas na Galeria Schmela, em Düsseldorf, com o rosto coberto de mel e ouro. Beuys vagou pela galeria, carregando no colo uma lebre morta com quem ele falava, comentando detalhes sobre as obras expostas.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

aka hibridismo

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Matthew Barney

(fabric)ação

"Ação é um conceito cujo sentido fica mais claro quando confrontado com outro, fabricação, de amplo trânsito não explicitado e não confessado. A fabricação é um processo com início determinado, um fim previsto e etapas estipuladas que devem levar ao fim preestabelecido. A ação, de seu lado, é um processo com início claro e armado mas sem fim especificado e, portanto, sem etapas ou estações intermediárias pelas quais se deve necessariamente passar - já que não há um ponto terminal ao qual se pretenda ou espere chegar. Na fabricação, o sujeito produz um objeto, assim como marceneiro faz um pé torneado. Na ação, o agente gera um processo, não um objeto." (Teixeira Coelho)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

John Cage strikes-back

"O problema é que o que guia você a fazer aquilo que você faz é isso, aquilo ou aquilo outro. Raramente o que guia você a fazer aquilo que você faz é nada - que é o que deveria ser."

"Eu posso criar sem saber nada sobre o que eu estou fazendo, e o estranho é que isso me agrada; e o mais estranho ainda é que isso agrada outras pessoas também. É muito engraçado. Parece que não há nada que eu possa fazer com aquilo que eu sei."

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

domingo, 6 de setembro de 2009

Freud e os bloqueios

"Freud dizia que toda inibição, de qualquer tipo é produzida por um excesso de erotização: quanto mais a gente investe energia, desejo em alguma coisa, tanto mais é fácil encontrar uma inibição. Quando você acha um encontro importantíssimo, decisivo e pensa naquilo todos os dias, é muito provável que: primeiro, você se atrase; segundo, uma vez sentado à mesa, consiga derrubar um copo de vinho na pessoa com quem você está; e tudo vai acontecer exatamente porque você erotizou demais, investiu totalmente naquilo. E isso acontece na criação sob forma de inibição criativa, de crise." (Contardo Calligaris)